O garoto da bicicleta

Reirazinho
2 min readJan 5, 2025

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art: Study of a Walking Man (1906), by Eduard Putra (1883–1915)

Caminhei à noite pelo quintal, vagueando pela solidão. Ouvi leves sussurros de lamentos de uma criança que assimilei a mim. Estava com a mãe na garupa da bicicleta, foi quando ouvi dele um sussurro que elevou a um diálogo tenebroso. Entristeci mais do que nos meus desencontros com a angústia: “Você não sai do celular, João! Toda vez que falo com você, você tá aí no celular”, disse a mãe com evidente descontentamento. O garoto, com a honestidade dos céus, trovejou a verdade: “Fico porque só sabem brigar. Você e meu pai só discutem”.

A bicicleta já tinha passado por mim, assim como a voz da mãe que respondeu algo que não compreendi bem. A criança disse com a voz aguda e molhada pela ânsia de lágrima: “Eu só queria ter uma família!” e então, a distância de nossos corpos silenciou de vez.

Nada mais trágico do que a morte do afeto na frase prematura. Experimentei em menor grau essa tragédia; um leve afastamento pode criar patologias quase irreversíveis. Tal como o garoto, para mim era melhor sentir a presença de outras experiências do que estar em casa. Identifico-me com a particularidade esquizoide: o embotamento afetivo e a solidão espiritual são amantes. O senso de expressão carrega a timidez. Meus braços gélidos se voltam ao corpo; meus olhos não gostam de outros olhos; embora escreva, a melancolia de meus versos é contida.

O garoto, em sentido psicanalítico, será um esquizoide.

João trouxe uma agonia tremenda em meu peito. É o retrato das famílias desestruturadas; pessoas próximas residindo sob o mesmo teto, mas com uma desconexão que transcende a união. Que referência simbólica essa criança terá? Para compensar a ausência afetiva talvez fique na rua. Ela será austera, anti-humana. Sangrará solidariamente pelo padecimento do mundo — mas nunca amará com o coração; terá a empatia racional, mas inautêntica. Já na fase madura, caminhará nas madrugadas longínquas. Pergunto-me com traços melancólicos cobrindo qualquer otimismo possível.

É na incógnita que suspendo minha existência em planos imagéticos. Existo fisicamente, mas partilho da vida de muitos outros Joãos. Certa vez comentei com um amigo se o ato de se imaginar no outro é narcisismo ou empatia: concluí que é a amálgama de ambos. A projeção de si no outro pode ser a forma de lidar com a confusão da consciência. Só pude ser João quando imaginei, como ele, a minha mãe sendo despojada pela verdade.

O edifício de consciência que levanto é o mesmo que desmorona, não apenas por mim, mas também pela queda do mundo. Isto é empatia.

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Written by Reirazinho

Sou feito de palavras não ditas e de melancólicas emoções. Escrevo o meu mundo com poesias e prosas.

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