O Grande Furo
Conto humorístico em parceria com amigos
O sol trouxe vida à mais um dia. O céu enchia-se de um colorido vivo, os bem-te-vis cantavam sobre os fios de alta tensão e o trânsito fluía em Bibliópolis.
Naquela manhã, Pisca e Exe encontraram-se na entrada do prédio que ficava o escritório do Zero Hora, o principal jornal da cidade, e pareciam ambos de bom humor.
Eles sorriram e se cumprimentaram, acenando ao passar pelo rapaz que ficava na guarita, um moço elegante e falastrão, e logo em seguida adentraram o saguão marmorizado do edifício, parando em frente ao elevador.
— E aí, conseguiu aproveitar o final de semana? Eu fiquei sabendo que você estava com um vazamento na caixa d’água — perguntou ela, apertando o botão repetidas vezes.
— Ah cara, eu consegui resolver, mas estragou todo o meu aparelho de som. Na moral…
— Tsc. Que coisa chata, é uma pena.
Na verdade, não havia um único sinal de “pena” em sua voz, pelo contrário, Pisca sustentava um tom de riso. Exe apenas emendou uma careta num bocejo e apertou os olhos.
Ambos adentraram o elevador num tom ameno e leve, com aquele ar de tranquilidade que emana das manhãs, prometendo um agradável dia de trabalho.
— Tá, mas e como foi a cobertura da morte do Jasper? — disse ele.
— Como assim?
A porta do elevador se fechou.
A equipe do Zero Hora era competente. Era esse o motivo de serem o jornal mais confiável de Bibliópolis. Seu sucesso nada tinha a ver com o fato de que, além deles, só havia mais um jornal na cidade, o Meio Tempo. O corpo editorial do Zero Hora era composto de jornalistas responsáveis, comprometidos com a verdade e transparência, decididos a entregar um trabalho de qualidade. Além disso, todos os profissionais que ali se dedicavam eram engajados e eficientes, funcionavam bem juntos; em resumo, eram mais que uma equipe — uma família.
Ou pelo menos era o que dizia o site oficial.
A porta do elevador se abriu.
— Cara, nem vem jogar tudo nas minhas costas não, você também é culpada!
— Eu?! Vai se lascar, seu babaca! Você é a pessoa mais sem noção e irresponsável que eu conheço!
— Irresponsável?! Porra, essa coluna é sua! A obrigação era de quem? Eu só me ofereci para salvar a sua pele porque o prazo tava estourando!
— Claro, depois de eu ter salvo a sua pele quando a Niss do RH te pegou cochilando no depósito!
Saíram ambos gesticulando aos berros de dentro do elevador, abrindo as portas duplas com um tapa, entraram no escritório pisando duro e se jogaram nas cadeiras. As mesas de frente uma para a outra.
Pisca cruzou os braços em negação, seu rosto contorcido no mais puro ódio, enquanto Exe massageava as têmporas. Após um longo silêncio, finalmente concluiu:
— O Stark vai matar a gente.
— O Stark vai matar a gente — repetiu ela, com a voz fina, debochando com a mesma acidez de uma criança de cinco anos.
— Ah, na moral, não fala mais comigo não.
Pisca abaixou-se e retirou debaixo da mesa uma pelúcia do Hamtaro, colocando-a em seu colo e abraçando-a. Seu olhar perdido no chão contemplava o vazio, contemplava a demissão e o fracasso. Contemplava o despejo e todas as outras formas inimagináveis da aplicação da lei de Murphy.
— E se a gente inventasse a matéria? — A sugestão dele não passava de um sussurro.
— Aham, vamos marcar de marcar isso aí.
— Não, é sério, Pisca. O Stark não vai estar aqui a maior parte do dia hoje, até mais tarde a gente consulta umas fontes e inventa alguma coisa.
— Eu vou ver e te aviso. — A face dela era a própria depressão.
— Parou! Vamos lá, vai dar certo, dá tempo de fazer.
Maikel, o estagiário, se aproximava cantarolando uma música quando quis saber o motivo dos cochichos.
— Bah, qual é a fofoca?
— Eu e o Exe ficamos de cobrir a morte do Jasper do Meio Tempo, mas ele foi pra um bar no final de semana e apagou em cima do balcão. Eu também não pude ir por causa do plano de mestrado e o prazo que o Stark deu acaba hoje.
Maikel olhou de Pisca para Exe, depois de Exe para Pisca e começou a rir. Um riso de nervoso, fino e errático que foi se agravando a cada segundo, piorando mais a cada olhar que ele recebia, até que o rapaz não pôde aguentar e apenas saiu andando. Exe ouviu o som das risadas nervosas abaixar a medida que Maikel se afastava e sumira corredor adentro; grasnando feito um albatroz eufórico.
— Torta de climão — comentou ele.
— Torta de climão total.
Então, Pisca finalmente largou a pelúcia, levantou-se da cadeira e bateu com ambas as mãos sobre a mesa.
— Certo. Tô bem. É hora do trabalho de campo, vamos reunir informação!
— Certeza que o melhor lugar pra catar informações é com o cara novo? — Pisca perguntou enquanto a dupla cruzava os corredores do jornal.
Dezenas de trabalhadores atarefados circulavam pela editora, carregando pilhas de papéis e cafezinhos para os gerentes do departamento. Exe reconhecia os olhares desesperados daqueles que provavelmente eram procrastinadores natos tentando bater suas metas. Ele via esse olhar toda manhã no espelho.
— Confia em mim, mesmo sendo novato, o cara é bom, sabe das coisas. Só não fala pra ele que eu disse isso— Exe concluiu de forma estranhamente séria.
Pisca revirou os olhos e casualmente desviou de um carrinho de documentos que vinha a mais de 10 km/h. O que não era muito, a não ser que você estivesse no corredor estreito e lotado de um jornal.
— Se ele souber realmente de algo que preste, relaxa que eu falo isso pra ele — afirmou ela.
— Certo, certo… Agora deixa comigo.
Os dois pararam de frente para uma das portas de vidro fosco comum na editora, normalmente servindo de barreira para os assuntos pessoais daqueles importantes o suficiente para terem um escritório próprio.
— O desgraçado chegou tem dois meses e já tem um escritório, isso que é injustiça — resmungou o rapaz, dando batidinhas no vidro.
— Vai saber da onde ele veio, né? Não colocaram nem o nome dele na porta ainda. Deve ter sido alguma figuraça por aí.
A porta se abriu e Exe logo abriu um sorrisão.
— E aí, cara! Era você mesmo que eu tava querendo ver — exclamou enquanto estendia a mão para um cumprimento empolgado.
— Qual é, eu to atrasado… — Uma voz grave e cansada respondeu, ainda, sim, retribuindo o aperto de mão.
As olheiras eram visíveis no rosto do novato e seu terno estava bagunçado, como se tivesse acabado de ser vestido.
— Bem-vestido assim pro escritório, Sérgio? — Pisca comentou.
— Esse não é meu–
— Ei, ei, aquilo ali é um dos microfones de campo? — interrompeu Exe, já invadindo a sala.
Pisca seguiu logo atrás, e o possível Sérgio fechou a porta após a entrada da dupla.
— É — respondeu, sem muito entusiasmo.
— Achei que você escrevia matérias científicas — disse Pisca.
Então o cansaço deixou o rosto do novato, virando pura frustração.
— Exato! Foi pra isso que eu fui contratado! Mas semana passada eu li uma passagem pro rádio e o Stark ouviu. Pior erro da minha vida! — Disparou, com raiva, enquanto andava pela sala como um gato raivoso. — Agora ele fala que eu tenho que tá nas ruas, que minha voz é perfeita pra fazer sucesso — concluiu, sentando-se em sua mesa, derrotado.
— Boas notícias então, né, parceiro? — falou Exe, mas seu tom não passava muita firmeza.
— Claro, eu fiz quatro anos de jornalismo, ao mesmo tempo que terminava minha graduação em computação, e depois mais dois anos de mestrado. Tudo isso para chegar aqui e ouvir que vou fazer sucesso porque minha voz é boa. As notícias não podiam ser melhores. — Sérgio olhou fixamente para o chão, revelando que não dormia há dias.
Pisca movia os pés sem sair do lugar e igualmente não sabia o que dizer. Ela olhou para o lado, procurando alguma salvação em Exe, mas descobriu que os dois estavam acabados quando apenas encontrou o olhar do amigo, percebendo que tivera a mesma esperança nela. Tudo que viu, no entanto, foram os lábios de Pisca movendo-se sem som, formando as palavras: torta de climão.
O rapaz mal conseguiu segurar a risada e deixou escapar uma pequena gargalhada enquanto cobria a boca. Sérgio tirou os olhos do chão e estocou um olhar assassino contra ele. Mas, apenas balançou a cabeça e suspirou:
— Imagino que seja engraçado… O que vocês querem afinal?
Pisca deu um tapa no ombro do colega, que ainda estava tentando parar de rir, e forçou um sorriso para Sérgio.
— Então, Sérgio…
— Meu nome não é–
— O que você tá sabendo sobre a morte do Jasper?
Ele fechou a boca, contendo sua negação contra o nome, e arregalou levemente os olhos parecendo surpreso.
— O desaparecimento do Jasper, você quer dizer.
A dupla congelou e ambos trocaram olhares céticos.
— Como assim desaparecimento? — perguntou Exe, incrédulo.
— Quem te passou essa informação, quem são as fontes?! — A mulher quase gritava.
— Calma, calma, gente. Isso é só um rumor que eu ouvi — Sérgio falou de forma apaziguadora — Dizem que ele tava devendo um monte e forjou a própria morte.
— Quem disse isso? — Pisca indagou com a mesma ferocidade de antes, lutando contra a bolsa para arrancar seu bloco de notas. Aquilo era coisa quente.
— Olha, eu não tenho os nomes, sabe? Mas é o que dizem por aí, só olhar na internet. Ouvi falar que ele pode ter se matado também, algo sobre pular de um dos prédios do jornal.
Pisca empacou enquanto tirava a tampa da caneta.
— Mas a causa da morte confirmada foi ataque cardíaco — disse ela com secura.
— Onde que você ouve essas merdas, cara? — Exe resolveu se intrometer.
Sérgio levantou as mãos em rendição.
— Eu só presto atenção nas ruas, agora que tô fazendo esse trabalho lá fora, tenho que tá atento a todo tipo de coisa.
— Achei que você tinha dito que tava na rua há uma semana só — falou Pisca, friamente.
Exe conseguia sentir o ódio começando a irradiar da parceira e temeu que ela pudesse bombardear Sérgio com gifs de ratos mais tarde, caso os ânimos não fossem devidamente acalmados.
— Pera, pera — Ele começou. — Até que você deu uma pista boa pra gente. Você falou de dívidas, né?
— Ah, sim, essa é uma das teorias também. Dizem que ele era cheio de dívidas com paradas indevidas. Tá aí a explicação para a sua parada cardíaca — Sérgio brincou, apontando para a moça, parecendo alheio ao perigo que sofria.
Pisca abriu a boca, mas logo o parceiro a puxou pelo braço.
— Quer saber de uma coisa? Acho que você deu bastante material pra gente. Boa sorte no campo, cara, vamos dar uma volta por aí.
Sérgio abriu um sorriso cansado.
— Que bom, boa sorte na matéria.
— Pode deixar, Sérgio! — gritou ele por cima do ombro enquanto empurrava Pisca para o mais longe que conseguia.
— Meu nome não é–
Então fecharam a porta.
Com fome de respostas e a ansiedade abocanhando mais ainda a curiosidade deles, a porta clara fechada naquele momento era contemplada com olhares de desgosto. Pisca, como sempre, entregava-se ao desespero. Viu-se vendendo miçanga para conseguir sobreviver, pois ela estudou muito para área jornalística, e se os dois únicos jornais da cidade não a aceitassem, o futuro da jovem seria aterrorizante.
Sérgio, com suas respostas vagas, que nada explicaram a situação, incomodou a dupla, apesar da leve curiosidade de ambos. Era como se viajasse em ideias inúteis ajuntadas em palpitações leigas. Na realidade, Sérgio não gostou tanto assim do jornalismo. Escolheu o curso como desculpa para ter o que fazer depois de concluir o ensino médio; não à toa entrou para a faculdade de ciência da computação tempos depois.
Pelo menos foi o que disse a alguns colegas que acabara de conhecer…
Os colegas precisavam da matéria, mas estavam afoitos com qualquer teoria da conspiração. Mas pelo menos conseguiram manter o senso crítico sobre as afirmações de Sérgio.
— O que foi aquilo, caralho? Na moral! O cara tá chapando, falou tudo menos a real causa da morte — Incrédulo, Exe disse a Pisca como se a culpa fosse dela.
— Foi você que falou que o cara era bom, e pipipi, popopó.
— Não enche! A gente tá sem tempo, o cara pela voz impõe respeito. Geralmente a turma respeita mais gente assim.
— O Cid Moreira deveria trabalhar conosco então…
— Bom, a gente pelo menos sabe que o morto era metido com coisa clandestina. Já é algo — disse ele, com um ar sherlockiano incompatível.
— Isso faz mais sentido contigo, Exe — Pisca com seu jeito ornado pelo sarcasmo alfineta o pobre rapaz.
— Chega, ô merda, tá chato já!
— Relaxa, sei de alguém que provavelmente tem as respostas certas. O Reirazinho é um dos mais sérios daqui da redação.
— Puts, o Reira, como pude esquecer dele?
Os dois, a passos de gansos, vão à sala do sujeito. Diga-se de passagem, era a mais distante de todos os colegas: no final do corredor, o local mais frio de todo o prédio.
A sala de Reirazinho seria palco de questões infinitas, questões estas que nada tem a ver com a responsabilidade dele. Chegando lá, avistaram a porta entreaberta e escutaram sua voz. Abriram-na lentamente se depararam com ele, digamos… relaxado: os pés calçados por um par de coturnos esticados sobre a mesa, de costas à porta com um livro nas mãos:
Dai-me rosas e lírios,
Dai-me flores, muitas flores
Quaisquer flores, logo que sejam muitas…
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
— Fernando Pessoa, Reira? — Pisca não se apruma em matar a curiosidade.
— Ann… s-sim! — desconcertado e assustado com a interrupção de sua recitação solitária — O que desejam?
— Tá sabendo da morte do editor-chefe, né? A gente precisa ter esse furo. Sabe de algo?
— Por que não procuraram a Josy? Ela é mais antenada do que todos nós em matéria de fofoca.
— Depois a gente explica. Olha, que tal você nos dar essa informação e em troca, o Exe te dá aquele box do Nietzsche que você queria?
— Eu?! Na mor-
— Aceito! — Reirazinho corta Exe num leve sorriso sacana.
Ele se levanta e em tom de vilão de filme, anda para o lado e para o outro com os braços para trás em tom pensativo.
— Vocês sabem que Jasper era envolvido com drogas, não é?
— Sério? — diz Exe.
— Além disso, como houve boatos, o assassinato pode muito bem ter sido pelo jogo do bicho.
— Jasper era muito certinho, nem ferrando que ele era dessas. Tá de zoa, né? — incrédula, Pisca encara Reirazinho.
— Eu tenho cara de quem gosta de zoar? Continuando, dizem por aí que morreu de infarto, mas deve ser mentira. Provavelmente a perícia colocou esse laudo e há todo um esquema pra acobertar a sua morte.
Naquele instante, apenas Exe decidiu embarcar na onda de Reirazinho. Pisca calculava cada frase que saía de sua boca.
— Por que fariam isso?
— É uma longa história. Quer saber mesmo?
— Óbvio!
— Jasper tinha vínculos com a boca de fumo, que, consequentemente, tinha laços com os patrões do jogo do bicho. Influente como era, ele decidiu pegar a filha do Laércio, miliciano e chefão do jogo aqui da cidade. Fiquei sabendo que ele era ultraciumento com a filha, e também com a Neta… Mas isso não vem ao caso. Deu um pipoco com um trezoitão no Jasper e fez coisa pior depois.
— Nem ferrando. Fez o quê?
— Depois que abriu a cabeça, pegou um pedacinho do cérebro e guardou no bolso. Mas daí já acho que é lenda. Por que ele faria isso? Quer intimidar quem? O que acha?
— Se fosse tipo uma guerra de gangues faria sentido, mas concordo contigo.
— Pois é. Soube também que gravou um áudio avisando que se descobrir que alguém já sabia que o Jasper saía com a filha dele, iria caçar não só a pessoa, mas toda a família. Mas deve ser só lenda, né, não?
— Cara… Tudo pode acontecer. É complicado.
— Como diria nossa querida Pisca: ele esmerilhou o cara. — Com seu contrassenso humorístico, Reirazinho tentou quebrar o gelo com tal piada.
A jovem, sem palavras para argumentar com esse diálogo tenebroso, apenas agradeceu o sujeito. Exe, conseguiu compreender o desconforto da moça só com um simples olhar de náusea.
— Não esqueça do box, ok? Custa uns R$ 130.
— Pode deixar… esquisito — disse em um volume mais ameno.
Após deixarem a sala de Reirazinho, Exe e Pisca se entreolharam confusos. Enquanto Sérgio, não tinha dado nenhuma informação conclusiva, a última tentativa havia sido oposta: detalhes demais, muito vívidos, do tipo que com toda certeza não passariam despercebidos e muito menos seriam esquecidos com facilidade.
Puta merda, pensou Exe. Se aquilo fosse verdade, Stark iria promover eles dois. Seria o furo do ano.
Infelizmente, Pisca acreditava que não era nem um, nem outro. Decidiu que iria checar cada fonte antes de redigir a matéria, enquanto o parceiro de escrita tentava pela última vez.
O rapaz deu cinco toques fracos e ritmados na porta do escritório em sua frente, anunciando que era ele, e a empurrou sem esperar por um convite.
— Me salva? — já adentro na sala.
— Não. Stark me deu um prazo apertado para entregar esse texto. Sai fora! — comentou Josy, sem tirar os olhos do teclado enquanto digitava freneticamente.
— Stark me mandou cobrir o motivo da morte do Jasper e eu não fui porque caí no sono do nada. Agora a polícia já mexeu na coisa toda e eu não faço ideia do que aconteceu.
— Por isso que ele mandou Pisca também, algum de vocês tinha que ser competente.
— Ela também não foi. Tava estudando pra prova de admissão no mestrado até tarde e me mandou mensagem dizendo que era minha vez de ir, só que eu não vi.
Finalmente os olhos de Josy deixaram a tela do computador. Ela se afastou um pouco e encarou Exe com os olhos estreitos enquanto abria seu Toddynho matinal.
— Tá me dizendo que o álibi de vocês é que estavam sozinhos ao mesmo tempo? — disse a moça, abruptamente interessada naquela conversa enquanto dava um sorriso travesso e fazia barulho com o canudo ao puxar o achocolatado.
— Nem vem, esquece essa fanfic — respondeu enquanto puxava a cadeira à frente para se sentar, afrouxando a gravata que o fazia parecer bem mais velho do que era — Saí da sala do Reirazinho agora e queria confirmar algumas informações, as coisas que ele me disse são bem… perturbadoras.
Josy explodiu em riso, apertando o Toddynho com muita força sem querer e fazendo a maior bagunça.
— Finalmente alguém pagou na mesma moeda! Reirazinho sabe de porra nenhuma. Ele tava comigo ontem na festa da filha do Lucrédio. Foi da Barbie, e a criança fez todo mundo usar óculos de sol cor de rosa. Todo mundo mesmo.
— Lamentável, velho — respondeu, imitando o bordão da editora-chefe — Perdi um tempão nisso. Sérgio falou um monte de coisa, mas nada com nada. Fala pra mim que você sabe de alguma coisa, senão Stark vai me banir dessa empresa.
— Sérgio? Sério, você tá tão desesperado assim? Qualquer um faz um trabalho melhor que esse cara. Literalmente qualquer um. Mas lamento, não sei de nenhum fato sobre esse assunto.
— Pode ser um rumor…
Exe estava de dedos cruzados. A colega era sua última esperança e ela sempre conversava com muita gente, então era uma boa aposta. Checou no smartwatch que havia recebido uma mensagem de Pisca dizendo que foram zoados e que estava indo ao encontro deles.
Tirando os óculos quadrados do rosto, Josy os limpou, passando a mão sobre as têmporas em seguida para afastar a enxaqueca. Pegou um pão de queijo do pratinho ao lado, pensando por quase um minuto inteiro antes de responder.
— Eu não devia falar nada pra você aprender, mas acho que nem Stark vai conseguir te livrar dessa se você não entregar alguma coisa. Kürst está vindo para o escritório essa semana, você sabia disso? Não dá pra bobear assim com ele aqui, cara. — Os olhos do rapaz saltaram imediatamente e sua pele perdeu a cor. — O que eu posso te dizer é que uma amiga da Verena que trabalha na concorrente pegou Jasper e uma assistente em cenas… bem… íntimas, no escritório dele semana passada.
— Parece um texto da Raquel — comentou Exe.
— Não é ótimo? O cara era casado, né? Não me surpreende, na verdade. Anna me disse que ele tinha cantado ela no dia do prêmio Jabuti, há duas semanas.
— Será que a esposa dele descobriu? Ela ia conseguir esfaquear o cara? Jasper era grande…
A porta se abriu novamente e Pisca entrou, dando bom dia com um sorriso que não chegava aos olhos.
— Trouxe docinhos pra você! — anunciou Josy, entregando à amiga uma caixinha de brigadeiros com emblema da Barbie para qual Exe olhou indignado. — Eu estava contando a ele que Jasper traía a mulher e todo mundo sabia. Lembra que o cara cantou a Anna? — Pisca fez sim com a cabeça, lembrando do fato apenas naquele momento — Então, Exe acha que o motivo pode ter sido que a esposa descobriu, mas tem outro ponto de vista. E se ele deu em cima de mais gente e o marido de alguma delas descobriu?
— Exe, você está pensando na mesma coisa que eu? — perguntou Pisca.
— Sim, que quero o docinho de brigadeiro branco.
Josy revirou os olhos e voltou a digitar.
— Não! Will não chegou com o olho roxo hoje? E se ele se meteu em alguma briga?
O tempo passava e o prazo ficava cada vez mais perto do limite. A dupla de incompetentes estava sentada em um pequeno banco que fica do lado externo da sala de Stark. Coçando o queixo, Exe quebrou o silêncio, dizendo:
— Porra, o Will tinha que faltar logo hoje? Vamos nos virar com o que dá. Não precisa ser algo exagerado, só uma história boa o suficiente pra ele acreditar.
— A gente não tem nada — murmurou a moça, com um semblante cabisbaixo.
— Para com isso! Óbvio que temos…
— Quer que eu liste? Vamos lá: Jasper envolvido com agiotagem, um pai ciumento que atirou nele e uma provável esposa maluca. O que uma coisa tem a ver com a outra?
— Deixa eu pensar…
— E desde quando você pensa? — Pisca logo o alfineta.
— Pô, vai se foder! Com todo o respeito, é claro.
O silêncio se instaurou mais uma vez. Sequer parecia que funcionários atarefados corriam pelo corredor. Exe puxou uma moeda do bolso e a fez passear por entre os dedos. Virou-se para o lado, encarando a colega.
— E se a gente o subornasse? Quanto você tem na conta?
— Você por acaso é maluco? Ele recebe mais que a gente, burro! — Inspirou o ar pesado. — Não vai dar tempo, tá tudo acabado.
A garota começou a escorregar do banco, direcionando-se até o vão que ficava embaixo deste.
— Pisca, que porra você tá fazendo?
— Surtando embaixo da mesa.
O rapaz conferiu o relógio, os ponteiros marcavam cinco minutos para a entrada na sala do patrão.
— Olha, não temos tempo pra surtar. Respira e tenta ficar calma. A gente vai resolver isso, de um jeito ou de outro.
— É verdade — A afirmação veio com uma entonação arrastada, digna do sotaque paulista.
A moça se ergueu de maneira desajeitada e encarou a porta de madeira escura. O clima tenso abafava o barulho do prédio. Os gritos e alardes dos trabalhadores se tornavam míseros murmúrios que se dispersavam pelo corredor.
— Espero que saiba o que está fazendo…
— Sempre sei — Ele não sabia.
Os amigos empurraram a porta juntos, ela parecia mais pesada que de costume. Lá dentro, o patrão estava sentado de frente ao computador. A caixinha de música do lado do porta-canetas tocava um Rock. As olheiras fundas do homem se encontraram com os olhos de Exe, como se o esperasse iniciar a conversa.
Ele parece mais cansado que o normal… Acabou de voltar da guerra do Vietnã?
— Bom dia, Stark!
— Já é de tarde — intrometeu-se Pisca, lançando um olhar de desdém.
— Ahn, boa tarde… Vocês concluíram o relatório que pedi? Queria ele pra hoje, vou viajar no fim de semana que vem.
— De novo? — diz a funcionária.
— Sim, vou andar de jetski. Enfim, terminaram?
Pisca suava frio, as gotas geladas percorriam sua testa, formando linhas de pura preocupação. As mãos tremiam e o coração batia acelerado. Sua única reação foi olhar para o amigo, esperando que ele tivesse alguma resposta, do contrário, ela surtaria. Exe captou o recado e, puxando o celular do bolso, respondeu:
— Claro, só não imprimimos ainda… Infelizmente a impressora do nosso escritório tá quebrada.
— Ela não tinha sido consertada semana passada? O Sylvion disse que era só o cartucho de tinta rosa…
— Já liguei pra ele resolver isso — comentou a garota, tentando explicar.
— Enfim, amanhã entregamos ele escrito — continuou Exe. — A questão é que foi um caso extenso… Extremamente difícil! Nem mesmo a polícia sabe direito o que aconteceu.
— Ele só morreu de infarto, não? — retrucou o patrão.
— Era o que a gente achava! Estudamos o caso a fundo e é bem mais sombrio do que isso…
Esse idiota acha mesmo que o Stark vai cair numa dessas? Vou me jogar pela janela! Pensou Pisca.
— Do que ele morreu então? — insistiu o patrão.
— Vou puxar o que descobrimos. — Ele começou a mexer no celular, olhando os blocos de notas cheio de aleatoriedades anotadas. — Segundo populares, ele estava envolvido com a gangue do traficante conhecido como Mochileiro…
— O quê? Como descobriram isso?!
— E-ele tinha um caso com a filha do Laércio, que gerencia a boca de fumo Bolsos em Chamas, a mesma do Mochileiro — Pisca completou.
Stark arregalou os olhos.
— Espera aí, como ele ficou sabendo desse relacionamento?!
Exe deu um sorriso de canto antes de continuar, tentando soar convincente. Porém, a tremedeira em suas pernas mal o deixava ficar em pé.
— A Verena tem uma amiga bem… observadora. Viu os dois no escritório do rapaz.
— Mas que coisa… Como acabou tudo isso?
— Um assassino contratado atirou a sangue-frio na cabeça dele…
— Mas as pessoas viram o corpo no chão!
— Aí que tá, o corpo não era dele, Stark… — Pisca olhava para o chão, balançando a cabeça. — Jasper tinha um cargo importante no Meio Tempo, ele não era burro. Sabia que ia ser perseguido e forjou a própria morte.
— Fora que se a mulher dele descobrisse, ia tomar umas boas facadas! Fiquei sabendo que ela é louquinha, pra dizer o mínimo… — complementou o parceiro.
O chefe tossiu e quase engasgou, mas recuperou o fôlego e disse:
— Vocês tinham que ter esse relatório! Precisamos publicar isso!
A moça engoliu em seco. Já não bastava estarem inventando a mentira do século, agora estavam encurralados. Ela cutucou o colega várias vezes com o cotovelo, mas ele não parecia nervoso.
— Não podemos, Stark.
— Como não?
— Lembra quando perguntou se eu roubei ou matei? Respondi que não, mas conheço quem já fez isso. Conheço pessoas envolvidas nesse mundo. O pessoal da Bolsos em Chamas. — O rapaz atirou um olhar fúnebre para o chefe. — O líder da facção proibiu qualquer um de comentar sobre o caso… Por isso o Meio-Tempo não anunciou nada.
— Pensei que era porque estavam de luto.
— Também, mas principalmente pelo que falei. Quem desafiar o que ele disse, vai pagar com a vida.
O chefe engoliu em seco, sua respiração estava pesada e curta. Ele não poderia morrer antes de viajar de jetski.
— Ahm, Exe, Pisca… Cancelem essa notícia. Prezo pela segurança dos colaboradores.
— O quê?! — gritou a moça, quase comemorando.
— Tá falando sério, Stark? Mas seria a notícia do ano!
— Ahm… — Pensou bem nas palavras antes de responder. — Eu não sei se vale a pena.
— Claro que vale! Não seja maluco!
O que esse animal tá fazendo? Pensou Pisca.
— Depois eu te dou uma resposta… Agora vão, preciso digerir tudo isso.
A dupla saiu da sala e um peso parecia ter saído de suas costas. O alívio que pairava pelo ambiente era quase palpável. A garota bateu o pé no chão, um gesto quase infantil.
— Tava tudo resolvido! O que foi aquilo no final?!
— Ué, ele precisa acreditar na mentira.
— Sua cara não treme de fazer um negócio desses? E se ele voltar atrás?
— Não vai. Confia em mim, são truques de um bom mentiroso.
— Se a gente se safar dessa, eu vou te dar uma caixa d’água nova.
— Já nos safamos, babaca.
— Oh yes, baby, very thank you!