Orfeu
Oh, nobre senhor dos cânticos!
Das liras jazem o algor
na perfeita sinfonia,
sucumbe no teu torpor
a nobreza tão sombria
de beijar deuses e santos!
Tua amada aguarda o som
deleitar pedras chorosas,
a chuva busca conforto
na lira que te esvanece;
saindo lamentos tão nobres
desabrocham lindas rosas,
cálidas, úmidas, fortes,
pois que Tânatos, Rei-morto,
ouve a dor e compadece.
Diz-lhe: — És corajoso e bom!
Sem que os teus olhos retornem,
a humanidade caminha
vagueando nessa seiva
sob pés no lago do inferno,
como Dante que na bainha,
a fé guardava por perto
o antídoto que permeia
os demônios do além.
E a humanidade é vil!
Faminta, toda lasciva,
contorce seus grandes olhos
numa trágica visão:
a guerra que mortifica
ódios cegos nos simpósios,
que banquetes tomarão
a sede do mesmo rio…
Na margem do rio que explode
a pedrada que alveja,
e no seio de tua consciência
ninfas pairaram inveja
que habitou tua inocência;
como o canto que partiu
dos braços em que sorriu
Eurídice, rainha da ode.
A relva te vela, Orfeu,
e o cântico toca o fim.
No Hades demônios desdenham…
Embrulham galhos arfados,
corvos e águias desenham
o triste céu de tom fúnebre.
Veem a lira carmesim
que ensina mesmo lúgubre,
o som de sermos amados
pela musa do amor teu.
O cântico da tristeza
suspira e em vão te chama,
e tua ausência lhe responde,
pois nos Ínferos acorda
com a doce humanidade…
Teus olhos mortos a avistam:
Orfeu:
Como?… Eurídice! Eurídice!
Minha doce ninfa que amo,
que pedi ao céu pr’a te ver,
gritei, chamei e fui profano
aos deuses, e quis morrer!
Do amor (com gosto) fui cúmplice.
Eurídice:
Nos Ínferos vieste… és louco!
Deveria viver o canto
e a lira que me enfeitiçou;
o desejo, oh, meu anjo, é manco!
Pois morre e Deus nos roubou
o céu que a ti é muito pouco…
Orfeu:
Tua boca blasfema, amor!
Sem ti m’nha voz era rouca,
cantava a tristonha angústia,
e tremia embaixo da tolda
a voz abissal sem música
corpórea, o coração algor.
Eurídice:
Reconheço, amado, o esforço.
Quero-te apesar dos Ínferos,
como clama a tua paixão
o beijo profundo e íntegro
e meu toque ser tua mão.
— Diz a pele que contorço…
Naquele instante, Orfeu
viveu para todo sempre
a doçura que então rente
Eurídice prometeu.