Orfeu

Reirazinho
2 min readFeb 16, 2025

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art: Orpheus Leading Eurydice from the Underworld (1861), by Jean-Baptiste-Camille Corot (1796–1875)

Oh, nobre senhor dos cânticos!
Das liras jazem o algor
na perfeita sinfonia,
sucumbe no teu torpor
a nobreza tão sombria
de beijar deuses e santos!

Tua amada aguarda o som
deleitar pedras chorosas,
a chuva busca conforto
na lira que te esvanece;
saindo lamentos tão nobres
desabrocham lindas rosas,
cálidas, úmidas, fortes,
pois que Tânatos, Rei-morto,
ouve a dor e compadece.
Diz-lhe: — És corajoso e bom!

Sem que os teus olhos retornem,
a humanidade caminha
vagueando nessa seiva
sob pés no lago do inferno,
como Dante que na bainha,
a fé guardava por perto
o antídoto que permeia
os demônios do além.

E a humanidade é vil!
Faminta, toda lasciva,
contorce seus grandes olhos
numa trágica visão:
a guerra que mortifica
ódios cegos nos simpósios,
que banquetes tomarão
a sede do mesmo rio…

Na margem do rio que explode
a pedrada que alveja,
e no seio de tua consciência
ninfas pairaram inveja
que habitou tua inocência;
como o canto que partiu
dos braços em que sorriu
Eurídice, rainha da ode.

A relva te vela, Orfeu,
e o cântico toca o fim.
No Hades demônios desdenham…
Embrulham galhos arfados,
corvos e águias desenham
o triste céu de tom fúnebre.
Veem a lira carmesim
que ensina mesmo lúgubre,
o som de sermos amados
pela musa do amor teu.

O cântico da tristeza
suspira e em vão te chama,
e tua ausência lhe responde,
pois nos Ínferos acorda
com a doce humanidade…
Teus olhos mortos a avistam:

Orfeu:

Como?… Eurídice! Eurídice!
Minha doce ninfa que amo,
que pedi ao céu pr’a te ver,
gritei, chamei e fui profano
aos deuses, e quis morrer!
Do amor (com gosto) fui cúmplice.

Eurídice:

Nos Ínferos vieste… és louco!
Deveria viver o canto
e a lira que me enfeitiçou;
o desejo, oh, meu anjo, é manco!
Pois morre e Deus nos roubou
o céu que a ti é muito pouco…

Orfeu:

Tua boca blasfema, amor!
Sem ti m’nha voz era rouca,
cantava a tristonha angústia,
e tremia embaixo da tolda
a voz abissal sem música
corpórea, o coração algor.

Eurídice:

Reconheço, amado, o esforço.
Quero-te apesar dos Ínferos,
como clama a tua paixão
o beijo profundo e íntegro
e meu toque ser tua mão.
— Diz a pele que contorço…

Naquele instante, Orfeu
viveu para todo sempre
a doçura que então rente
Eurídice prometeu.

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Written by Reirazinho

Sou feito de palavras não ditas e de melancólicas emoções. Escrevo o meu mundo com poesias e prosas.

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