Pureza

Reirazinho
2 min readApr 21, 2024
art: Girl Holding A Snake — Innocence (1900), by Karl Wilhelm Diefenbach (1851–1913)

A pureza mora no estado de graça presente. Deus está na ambrosia que digere em nosso estômago; está na paz que me engole neste instante, porque permeio ínfimas centelhas de amor aos que me leem. Tudo é mais simples quanto o ar desta manhã que orna meus pulmões ansiosos; ansiosos porque querem o preenchimento eterno, mas o tempo é limitado. Deus está neste cinza-claro céu, desconfiado pelo banho das nuvens numa morosa chuva. Olho o meu gato de pelo branco, felpudo e lindo como os traços dos anjos seráficos. Jubilam os olhos e o sorriso naturalmente força os lábios a terem razão. Outro gato avisto, mas o amalgamado por pelos cinzas, listrado e branco: dessa vez, este encolheu-se sobre o meu colo. Dorme como um pão francês, descansando no papel de embrulho dos avós, que no badalar das manhãs, levantam-se como o belo poente.

Ai de mim querer o fim deste momento! O sentido da existência é a inocência como protesto contra o tempo. Ele encarde o corpo como a bronca das mães que tanto avisa-nos sobre não brincar na lama. Teimosos como somos, deleitamos a sujeira nos pés nus, e logo beijamos os lençóis com pisadas de brincadeiras comuns. A maior pureza mostra-se na infância quando o tempo parece não passar, lá onde Deus alimenta as crianças com a seiva da não misericórdia. Estou agora lamuriando outrora com as lentes oblíquas da memória. Entre o desejo e a lembrança, encontro a essência sutil dos mistérios do mundo: a presença. Estar presente e tranquilo, enquanto as coisas que foram não mais voltam, é realmente viver. Neste pêndulo do passado e do agora, marco a história com ações futuras.

Dei graças aos céus e tudo o que sinto é o destino. Senti repulsa da ideia de destino. E agora, ah, mas agora a maturidade adulta de ser inocente quanto os meus gatos, o que fui quando criança, ou a lua minguante que acalenta as lágrimas dos poetas, é a prova da pureza de Deus no seu perpétuo amor.

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Reirazinho

Sou feito de palavras não ditas e de melancólicas emoções. Contemplo o mundo escrevendo poesias, prosas, contos, ensaios e crônicas.